Miúcha
O nome da pequena cadela é opção de sua dona Jandira, minha mulher. Decerto não gostei, mas com o passar do tempo é como acostumar-se com todos os nomes e sobrenomes que pais desavisados recortam de livros e revistas e de transições da mídia direto para o registro. Mas estou falando de uma simples cachorra que não tem identidade, vocação e liberdade de expressão. É um ser vivo por complacência de Deus e das criaturas terrenas.
Cansado ao extremo, dormindo não mais que quatro horas por dia, devido ao deslocamento que faço do Município de Plácido de Castro para a capital, Rio Branco/AC, percorrendo mais de 200km diários, chegando em casa por volta de meia-noite e meia, partindo para o trabalho às 6h30min da manhã todo quebrado pelo corpo, tolerância é zero diante da inevitável insônia que me ataca quando preciso de descanso e paz. Só Dunga e Miúcha não se deram conta desse meu calvário, e começaram a bagunçar. Ele, tentando atacá-la a seu modo; ela, defendendo-se num latido infernal.
A manhã dava sinais pela fresta da janela, e a cabeça tonta e dolorida das noites em claro. Foi quando tive a infeliz ideia de tomar uma decisão. Ou Dunga ou Miúcha. Evidentemente não titubeei e decidi pela segunda opção, que é bem mais econômica. Ela não tem cuidado em nada do quintal. Mas o curioso é que por mais que não tolerássemos seu comportamento, ora arredio e teimoso, ora dócil e meigo, quando eu chegava de madrugada era sempre Miúcha que vinha se humilhando aos meus pés, arrastando-se a lamber-me as mãos. Adorava entrar em casa e ia direto ao lixeiro à procura de uma novidade além do único cardápio de ração felina. Não apreciava mais a porção canina, mesmo pedigree.
Liguei o carro, abri o portão. Pedi para minha mulher envolvê-la num saco de modo que não sujasse com suas partes íntimas o assento do veículo, e de lá partimos rumo à Estrada AC 475, emudecidos, mesmo convictos. Já sabíamos do que se tratava. Numa certa distância, soltamo-la. Ela ainda deu impulso acelerado na direção do carro, mas foi impedida e regressou à procura de um lugar sem cobertor de seus novos amigos e primeiros amores.
Da mesma forma voltamos pra casa, calados. Jandira ainda deitou-se e chorou bastante, mesmo tendo sido dura ao ponto de apoiar-me. De forte tentei reanimá-la, mas daquele dia em diante, mesmo tendo retornado centenas de vezes ao lugar em que a abandonamos, não conseguimos ver a pequena Cofap teimosa.
Meus dias foram amargos. Talvez a insônia tenha-se acentuado em mim ante a preocupação e ato desumano para com aquele animalzinho que nos amava e era fiel de verdade como um verdadeiro amigo. Aliás, eu nunca vi prova de amor igual em toda minha vida. Nunca Miúcha rosnou ou fez cara feia pra nós, ao contrário de Dunga, sempre na dele e irredutível. O pior é que ela não sabia o motivo daquela volta pela madrugada, que não era um passeio. Dunga, mesmo assim, não parou de latir durante as madrugadas seguintes, deixando-me acordado e muito mais abatido. Eu não conseguia produzir, nem no trabalho nem na faculdade. Se fosse eu julgar meus resultados e produtividade, seriam como a cor vermelha deste texto.
Confessei para os colegas de trabalho o motivo que me levou a fazer aquela atrocidade com a pequena, e eles se compadeceram dela, evidentemente. Meus problemas devem ser resolvidos por mim, e não por impulsos e instintos, através de um tratamento apropriado.
Após alguns dias de monotonia sem Miúcha, onde o coração se torna professor e esclarece ao cérebro que consciência deve ser medida por ações, refleti na situação do mundo em que nos encontramos. Somos impulsionados pela ganância material. Não nos contentamos com o ensino médio porque o mercado é muito mais exigente, e também não nos contemos com nossos níveis superiores, porque a regra é superação, mesmo que o sonho não aconteça e a felicidade não venha, com simplicidade de um analfabeto. Nossas noites não são tão verdadeiras quanto nosso passado de frio sem cobertor, onde o calor humano era muito mais valorizado. Maltratamos o próximo, e próximo por mais indiretamente que sejam, são os animais que cuidamos. Eles não têm oportunidade de seguir o curso normal de sua vida, de optar por suas fases, de sentir dor de cabeça, de dentes. Não se expressam, e às vezes latem de fome e de dor sem que saibamos decifrar sua linguagem, a não ser pela mera convivência. Evidentemente, sei quando Dunga pede comida, pois ocorre sempre a partir das dezoito horas num latido perceptível e impaciente. Miúcha, ao contrário, não esboça seus desejos.
A pequena cadela quase morreu acometida por um mal estranho. Vivia babando e tremendo, nas últimas entre este mundo e o de seu chamado, e como não sabe o que se passa consigo, não poderia esperar um deus canino salvador e onipotente, salvo os abutres apressados por sua decomposição ao relento.
Nesses dias de monotonia e de reflexão, pus-me a pensar que meu mundo sem Miúcha não deveria mais ser o mesmo. Tantas separações nos deixam abandonados pelos próprios filhos que dispensamos amor, não pensamos que os animais, simplesmente os cães, mesmo apanhando ou abandonados, não deixam de nos amar perdidamente, de nos ser fiel aos restos que lhes jogamos, sem qualquer preparo e cuidado, na maioria das vezes, como se lhes estivéssemos fazendo favor.
Nesses dias de monotonia me toca o celular no horário da faculdade, curso de processo civil. Era Jandira dizendo que encontraram Miúcha num corre-corre pra cima e pra baixo junto a um único cão preto e grande, da cor de Dunga. Mas só encontraram Miúcha porque Flávio, um amigo e dono do pai da cadela a reconheceu, e esta só parou quando ele a chamou pelo nome. De tanto correr Flávio não conseguiu pegá-la, mas quando disse o nome da pequena, ela veio disparada aos braços dele. E agora, como não gostar dos nomes? Deve ter uma explicação para isso, aliás, uma lição, pois todos se acostumam. Esse menino herói é mesmo um salvador.
Agora, não há um dia triste. Ela passou a ter uma vida de rainha, tão pequena que mal cabe em caixas de papelão substituídas semanalmente diante dos rasgões que deixa, mas não mais fica no relento e não nos dá trabalho.
Estamos felizes. Ela ainda se humilha a rastejar a procura de nossos pés, para lamber. Está mais forte, mais bonita, e, sobretudo, mal acostumada pela vadiagem de alguns dias. Quando abro o portão, Miúcha sai em disparada com as orelhinhas ao vento, não se importando com os meus chamados. Entra nos quintais e deles sai, enlameada. Pegamo-la, banhamo-la e devolvemos à sua caixa, e nesse lar doce lar vivemos unidos para, somente com a vontade de Deus, nos separar.
E como não cantar minha doce canção sem o amor desta pequena?
“Vem cá, meu bem, que é bom lhe ver
O mundo anda tão complicado
Que hoje eu quero fazer tudo por você”.